Partes do livro 'Leviatã', de Thomas Hobbes.
“O que imaginarmos será finito. Portanto não existe qualquer ideia, ou
concepção de algo que possamos denominar infinito. Nenhum homem pode ter em seu
espírito uma imagem de magnitude infinita, nem conceber uma velocidade
infinita, um tempo infinito, ou uma força infinita, ou um poder infinito.
Quando dizemos que alguma coisa é infinita, queremos apenas dizer que não somos
capazes de conceber os limites e fronteiras da coisa designada, não tendo
concepção da coisa, mas de nossa própria incapacidade.”
“Pois entre a verdadeira
ciência e as doutrinas errôneas situa-se a ignorância. A sensação e a
imaginação naturais não estão sujeitas a absurdos. A natureza em si não pode
errar; e à medida que os homens vão adquirindo uma abundância de linguagem,
vão-se tornando mais sábios ou mais loucos do que habitualmente. Nem é possível
sem letras que algum homem se torne ou extraordinariamente sábio, ou extraordinariamente
louco, a menos que sua memória seja atacada por doença, ou tenha deficiência na
constituição dos órgãos.”
“Contudo, aqueles que não
possuem qualquer ciência encontram-se numa condição melhor e mais nobre, com
sua natural prudência, do que os homens que, por raciocinarem mal ou por
confiarem na incorreta razão, caem em regras gerais falsas e absurdas. Porque a
ignorância das causas e das regras não afasta tanto os homens de seu caminho
como a confiança em falsas regras e o fato de tomarem, como causas daquilo a
que aspiram, causas que o não são, pois são causas do contrário.”
“Do que os homens desejam
se diz também que o amam, e que odeiam aquelas coisas pelas quais sentem
aversão. De modo que o desejo e o amor são a mesma coisa, salvo que por desejo
sempre se quer significar a ausência do objeto, e quando se fala em amor
geralmente se quer indicar a presença do mesmo. Também por aversão se significa
a ausência, e quando se fala de ódio pretende-se indicar a presença do objeto.
(...)
Das coisas que não
desejamos nem odiamos se diz que as desprezamos. Não sendo o desprezo outra
coisa senão uma imobilidade ou contumácia do coração, ao resistir à ação de
certas coisas, a qual deriva do fato de o coração estar já estimulado de
maneira diferente por objetos mais potentes, ou da falta de experiência com
relação àquilo.”
“O apetite, ligado à
crença de conseguir, chama-se esperança.
Sem essa crença, o apetite
chama-se desespero.
Chama-se medo a opinião
ligada à crença de dano proveniente do objeto.
Chama-se cólera a coragem
súbita.
Chama-se confiança em si
mesmo a esperança constante.
Chama-se desconfiança em si
mesmo o desespero constante.
Chama-se indignação a
cólera perante um grande dano feito a outrem, quando pensamos que este foi
feito por injúria.
Chama-se benevolência, boa
vontade, caridade, o desejo do bem dos outros. Se for do bem do homem em geral,
chama-se bondade natural.
Chama-se cobiça o desejo do
bem dos outros, palavra que é sempre usada em tom de censura, porque os homens
que lutam por elas veem com desagrado que outros as consigam; embora o desejo
em si mesmo deva ser censurado ou permitido conforme a maneira como se procura
conseguir essas riquezas.
Chama-se ambição o desejo
de cargos ou de preeminência, nome usado também no pior sentido, pela razão
acima referida.
Chama-se pusilanimidade o
desejo de coisas que só contribuem um pouco para nossos fins e o medo das
coisas que constituem apenas um pequeno impedimento.
Chama-se magnanimidade o
desprezo pelas pequenas ajudas e impedimentos.
Chama-se coragem ou
valentia a magnanimidade, em perigo de morte ou de ferimentos.
Chama-se liberalidade a
magnanimidade no uso das riquezas.
Chama-se mesquinhez e
tacanhez ou parcimônia a pusilanimidade quanto a esse mesmo uso, conforme dela
se goste ou não.
Chama-se amabilidade o amor
pelas pessoas, sob o aspecto da convivência social.
Chama-se concupiscência
natural o amor pelas pessoas apenas sob o aspecto dos prazeres dos sentidos.
Chama-se luxúria o amor
pelas pessoas adquirido por reminiscência obsessiva, isto é, por imaginação do
prazer passado.
Chama-se paixão do amor o
amor por uma só pessoa, junto ao desejo de ser amado com exclusividade.
Chama-se ciúme o amor junto com o receio de que o amor não seja recíproco.
Chama-se ânsia de vingança
o desejo de causar dano a outrem, a fim de levá-lo a lamentar qualquer de seus
atos. (...)
Chama-se religião o medo
dos poderes invisíveis, inventados pelo espírito ou imaginados a partir de
relatos publicamente permitidos; quando esses não são permitidos, chama-se
superstição. Quando o poder imaginado é realmente como o imaginamos, chama-se
verdadeira religião.
O medo sem se saber por que
ou de que se chama terror, pânico, nome que lhe vem das fábulas que faziam de
Pan seu autor. Na verdade, existe sempre em quem primeiro sente esse medo certa
compreensão da causa, embora os restantes fujam devido ao exemplo, cada um
supondo que seu companheiro sabe por quê. Portanto, esta paixão só ocorre numa
turba ou multidão de pessoas. (...)
Chama-se desalento a
tristeza devida à convicção da falta de poder.
Chama-se vanglória a
invenção ou suposição de capacidades que se sabe não se possuir, é extremamente
frequente nos jovens, e é alimentada pelas narrativas verdadeiras ou fictícias
de feitos heroicos. Muitas vezes é corrigida pela idade ou pela ocupação.
O entusiasmo súbito é a
paixão que provoca aqueles trejeitos a que se chama riso. Este é provocado ou
por um ato repentino de nós mesmos que nos diverte, ou pela visão de alguma
coisa deformada em outra pessoa, devido à comparação com a qual subitamente nos
aplaudimos a nós mesmos. Isto acontece mais com aqueles que têm consciência de
menor capacidade em si mesmos, e são obrigados a reparar nas imperfeições dos
outros para poderem continuar sendo a favor de si próprios. Portanto, um
excesso de riso perante os defeitos dos outros é sinal de pusilanimidade.
Porque o que é próprio dos grandes espíritos é ajudar os outros a evitar o
escárnio, e comparar-se apenas com os mais capazes.
O desalento súbito, pelo
contrário, é a paixão que provoca o choro, o qual é provocado por aqueles
acidentes que bruscamente vêm tirar uma esperança veemente, ou por um fracasso
do próprio poder. Os que lhe estão mais sujeitos são os que contam sobretudo
com ajudas externas, como as mulheres e as crianças. Assim, alguns choram
porque perderam os amigos, outros por causa da falta de amabilidade destes
últimos, e outros pela brusca paralisação de seus pensamentos de vingança,
provocada pela reconciliação. Mas em todos os casos, tanto o riso como o choro
são movimentos repentinos, e o hábito a ambos faz desaparecer. Pois ninguém ri
de piadas velhas, nem chora por causa de uma velha calamidade.
A vergonha é a tristeza
devida à descoberta de alguma falta de capacidade, a paixão que se revela
através do rubor. Consiste ela na compreensão de uma coisa desonrosa. Nos jovens
é sinal de amor à boa reputação, e é louvável. Nos velhos é sinal do mesmo,
mas, como já chega tarde demais, não é louvável.
Chama-se imprudência o
desprezo pela boa reputação.
Chama-se piedade a tristeza
perante a desgraça alheia, e surge do imaginar que a mesma desgraça poderia
acontecer a nós mesmos. Por isso é também chamada compaixão, ou então, na
expressão atualmente em voga, sentimento de companheirismo. Assim, por calamidades
provocadas por uma grande maldade, os melhores homens são os que sentem menos
piedade, e pela mesma calamidade, os que sentem menos piedade são os que se
consideram menos sujeitos à mesma.
Chamam crueldade o desprezo
ou pouca preocupação com a desgraça alheia, que deriva da segurança da própria
fortuna. Pois considero inconcebível que alguém possa tirar prazer dos grandes
prejuízos alheios, sem que tenha um interesse pessoal no caso.
Chama-se emulação a
tristeza causada pelo sucesso de um competidor em riqueza, honra ou outros bens
se se lhe juntar o esforço para aumentar nossas próprias capacidades, a fim de
igualá-lo ou superá-lo. Chama-se inveja quando ligada ao esforço para suplantar
ou levantar obstáculos ao competidor.
Chama-se deliberação todo o
conjunto de desejos, aversões, esperanças e medos, que vão se desenrolando até
que a ação seja praticada, ou considerada impossível, quando surgem
alternadamente no espírito humano apetites e aversões, esperanças e medos,
relativamente a uma mesma coisa; quando passam sucessivamente pelo pensamento
as diversas consequências boas ou más de uma ação, ou de evitar uma ação; de
modo tal que às vezes se sente um apetite em relação a ela, e às vezes uma
aversão; às vezes a esperança de ser capaz de praticá-la, e às vezes o
desespero ou medo de empreendê-la. (...)
Esta sucessão alternada de
apetites, aversões, esperanças e medos não é maior no homem do que nas outras
criaturas vivas, consequentemente os animais também deliberam.
Diz-se então que toda
deliberação chega ao fim quando aquilo sobre que se deliberava foi feito ou
considerado impossível, pois até esse momento conserva-se a liberdade de
fazê-lo ou evitá-lo, conformemente aos próprios apetites ou aversões.”
“Sem firmeza e direção
para um fim determinado, uma grande imaginação é uma espécie de loucura, como
acontece com aqueles que, iniciando um novo discurso, se deixam desviar de seu
objetivo, por qualquer coisa que lhes passe pelo pensamento, para longas
digressões e parênteses, até que inteiramente se percam.”
“As paixões que provocam
de maneira mais decisiva as diferenças de talento são, principalmente, o maior
ou menor desejo de poder, de riqueza, de saber e de honra. Todas as quais podem
ser reduzidas à primeira, que é o desejo de poder. Porque a riqueza, o saber e
a honra não são mais do que diferentes formas de poder.”
“Universalmente
considerado, o poder de um homem consiste nos meios de que presentemente dispõe
para obter qualquer visível bem futuro.”
“Os títulos de honra, como
duque, conde, marquês, e barão, são honrosos, pois significam o valor que lhes
é atribuído pelo poder soberano do Estado. Nos tempos antigos esses títulos
correspondiam a cargos e funções de mando, sendo alguns derivados dos romanos,
e outros dos germanos e franceses. Os duques, em latim duces, eram generais de
guerra. Os condes, comites, eram os companheiros ou amigos do general, e
era-lhes confiado o governo e a defesa dos lugares conquistados e pacificados.
Os marqueses, marchiones, eram condes que governavam as marcas ou fronteiras do
Império. Estes títulos de duque, conde e marquês foram introduzidos no Império,
na época de Constantino, o Grande, numa adaptação dos costumes da milícia dos
germanos. Mas barão parece ter sido um título dos gauleses, e significa um
grande homem, como os guardas que os reis e príncipes usavam na guerra para
rodear sua pessoa. (...) Com o passar do tempo estes cargos de honra, por
ocasião de distúrbios ou por razões de bom e pacífico governo, foram
transformados em meros títulos, servindo em sua maioria para distinguir a
preeminência, lugar e ordem dos súditos no Estado, e foram nomeados duques,
condes, marqueses e barões para lugares dos quais essas pessoas não tinham
posse nem comando, e criaram-se também outros títulos, para o mesmo fim.”
“E ao homem é impossível
viver quando seus desejos chegam ao fim, tal como quando seus sentidos e
imaginação ficam paralisados. (...)
Assinalo assim, em primeiro
lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo
de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte. E a causa disto nem sempre
é que se espere um prazer mais intenso do que aquele que já se alcançou, ou que
cada um não possa contentar-se com um poder moderado, mas o fato de não se
poder garantir o poder e os meios para viver bem que atualmente se possuem sem
adquirir mais ainda. E daqui se segue que os reis, cujo poder é maior, se
esforçam por garanti-lo no interior através de leis, e no exterior através de
guerras. E depois disto feito surge um novo desejo, em alguns, de fama por uma
nova conquista, em outros, de conforto e prazeres sensuais, e em outros de
admiração, de serem elogiados pela excelência em alguma arte, ou outra
qualidade do espírito.”
“A competição pela
riqueza, a honra, o mando e outros poderes leva à luta, à inimizade e à guerra,
porque o caminho seguido pelo competidor para realizar seu desejo consiste em
matar, subjugar, suplantar ou repelir o outro. (...)
O desejo de conforto e
deleite sensual predispõe os homens para a obediência ao poder comum, pois com
tais desejos se abandona a proteção que poderia esperar-se do esforço e
trabalho próprios. O medo da morte e dos ferimentos produz a mesma tendência, e
pela mesma razão. Pelo contrário, os homens necessitados e esforçados, que não
estão contentes com sua presente condição, assim como todos os homens que
ambicionam a autoridade militar, têm tendência para provocar situações
belicosas e para causar perturbações e revoltas, pois só na guerra há honra
militar, e a única esperança de remediar um mau jogo é dar as cartas uma vez
mais.”
“Provocar em alguém um mal
maior do que se pode ou se esta disposto a sofrer, faz tender para odiar quem
sofreu o mal, pois só se pode esperar vingança ou perdão; e ambos são odiosos.”
“A curiosidade, ou amor
pelo conhecimento das causas, afasta o homem da contemplação do efeito para a
busca da causa, e depois também da causa dessa causa, até que forçosamente deve
chegar a esta ideia: que há uma causa da qual não há causa anterior, porque é
eterna; que é aquilo a que os homens chamam Deus. De modo que é impossível
proceder a qualquer investigação profunda das causas naturais, sem com isso nos
inclinarmos para acreditar que existe um Deus eterno, embora não possamos ter
em nosso espírito uma ideia dele que corresponda a sua natureza. Porque tal
como um homem que tenha nascido cego, que ouça outros falarem de irem
aquecer-se junto ao fogo, e seja levado a aquecer-se junto ao mesmo, pode
facilmente conceber, e convencer-se, de que há ali alguma coisa a que os homens
chamam fogo, e é a causa do calor que sente, mas é incapaz de imaginar como ele
seja, ou de ter em seu espírito uma ideia igual à daqueles que veem o fogo;
assim também, através das coisas visíveis deste mundo, e de sua ordem
admirável, se pode conceber que há uma causa dessas coisas, a que os homens
chamam Deus, mas sem ter uma ideia ou imagem dele no espírito.
E aqueles que pouca ou
nenhuma investigação fazem das causas naturais das coisas, todavia, devido ao
medo que deriva da própria ignorância, daquilo que tem o poder de lhes
ocasionar grande bem ou mal, tendem a supor, e a imaginar por si mesmos, várias
espécies de poderes invisíveis, e a se encherem de admiração e respeito por
suas próprias fantasias. Em épocas de desgraça tendem a invocá-las, e quando
esperam um bom sucesso tendem a agradecer-lhes, transformando em seus deuses as
criaturas de sua própria fantasia. E foi dessa maneira que aconteceu, devido à
infinita variedade da fantasia, terem os homens criado no mundo inúmeras
espécies de deuses. Este medo das coisas invisíveis é a semente natural daquilo
a que cada um em si mesmo chama religião, e naqueles que veneram e temem esse
poder de maneira diferente da sua, superstição.
E tendo esta semente da
religião sido observada por muitos, alguns dos que a observaram tenderam a
alimentá-la, revesti-la e conformá-la às leis, e a acrescentar-lhe, de sua
própria invenção, qualquer opinião sobre as causas dos eventos futuros que
melhor parecesse capaz de lhes permitir governar os outros, fazendo o máximo
uso possível de seus poderes.”
“Quanto àquela parte da
religião que consiste nas opiniões relativas à natureza dos poderes invisíveis,
quase nada há com um nome que não tenha sido considerado entre os gentios, em
um ou outro lugar, como um deus ou um demônio, ou imaginado pelos poetas como
animado, habitado ou possuído por um ou outro espírito.
A matéria informe do mundo
era um deus com o nome de Caos.
O céu, o oceano, os
planetas, o fogo, a terra, os ventos, eram outros tantos deuses.
Os homens, as mulheres, um
pássaro, um crocodilo, uma vaca, um cão, uma cobra, uma cebola, um alho-porro,
todos foram divinizados. Além disso, encheram quase todos os lugares com
espíritos chamados daemons. As planícies, com Pan, e panises, ou sátiros; os
bosques, com faunos e ninfas; o mar, com tritões e outras ninfas; cada rio e
cada fonte, com um fantasma do mesmo nome, e com ninfas; cada casa com seus
lares ou familiares; cada homem com seu gênio; o inferno, com fantasmas e
acólitos espirituais como Caronte, Cérbero e as Fúrias; e de noite todos os
lugares com larvas, lêmures, fantasmas de homens falecidos, e todo um reino de
fadas e duendes. Também atribuíram divindade e dedicaram templos a meros
acidentes e qualidades, como o tempo, a noite, o dia, a paz, a concórdia, o
amor, o ódio, a virtude, a honra, a saúde, a corrupção, a febre, e outros
semelhantes. E em suas preces, a favor ou contra, a eles oravam, como se
houvesse fantasmas com esses nomes pairando sobre suas cabeças, os quais
deixariam cair, ou impediriam de cair, aquele bem ou mal a favor do qual, ou
contra o qual oravam. Invocavam também seu próprio engenho, sob o nome de
Musas; sua própria ignorância, sob o nome de Fortuna; seu próprio desejo sob o
nome de Cupido; sua própria raiva sob o nome de Fúrias; seu próprio membro
viril sob o nome de Príapo; atribuíam suas ejaculações a Íncubos e Súcubos; de
modo tal que nada que um poeta pudesse introduzir como pessoa em seu poema
deixavam de fazer um deus, ou um demônio.
Os mesmos autores da
religião dos gentios, observando o segundo fundamento da religião, que é a
ignorância que os homens têm das causas, e consequentemente sua tendência para
atribuir sua sorte a causas das quais ela em nada aparenta depender,
aproveitaram para impor à sua ignorância, em vez das causas secundárias, uma
espécie de deuses secundários e ministeriais, atribuindo a causa da fecundidade
a Vênus, a causa das artes a Apolo, a da sutileza e sagacidade a Mercúrio, a
das tormentas e tempestades a Éolo, e as de outros efeitos a outros deuses. De
modo tal que havia entre os pagãos quase tão grande variedade de deuses como de
atividades.
As formas de veneração que
os homens naturalmente consideravam próprias para oferecer aos seus deuses,
tais como sacrifícios, orações e ações de graças, além das acima referidas, os
mesmos legisladores dos gentios acrescentaram suas imagens, tanto em pintura
como em escultura. A fim de que os mais ignorantes (quer isto dizer, a maior
parte, ou a generalidade do povo), pensando que os deuses em cuja representação
tais imagens eram feitas nelas realmente estavam incluídos, como se nelas
estivessem alojados, pudessem sentir perante elas ainda mais medo. E
dotaram-nos com terras e casas, funcionários e rendas, separadas de todos os
outros usos humanos, isto é, santificadas e consagradas a esses seus ídolos;
tais como cavernas, grutas, bosques e montanhas, e também ilhas inteiras; e
atribuíram-lhes, não apenas as formas, umas de homens, outras de animais, e outras
de monstros, mas também as faculdades e paixões de homens e animais, como a
sensação, a linguagem, o sexo, o desejo, a geração (e isto não apenas
misturando-se uns com os outros, para propagar a raça dos deuses, mas
misturando-se também com os homens e as mulheres, produzindo deuses híbridos, e
simples moradores dos céus, como Baco, Hércules e outros); e além dessas também
o ódio e a vingança, e outras paixões das criaturas vivas, assim como as ações
delas derivadas, como a fraude, o roubo, o adultério, a sodomia, e todo e
qualquer vício que possa ser tomado como efeito do poder, e causa do prazer; e
todos aqueles vícios que entre os homens são considerados mais como contrários
à lei do que contrários à honra.
E por último, aos
prognósticos dos tempos vindouros, que naturalmente não passam de conjeturas
baseadas na experiência dos tempos passados, e sobrenaturalmente não são mais
do que revelação divina, os mesmos autores da religião dos gentios, baseando-se
em parte numa pretensa experiência, e em parte numa pretensa revelação,
acrescentaram inúmeras outras supersticiosas maneiras de adivinhação. E fizeram
os homens acreditar que descobririam sua sorte, às vezes nas respostas ambíguas
ou destituídas de sentido dos sacerdotes de Delfos, Delos, e Amon, e outros
famosos oráculos, respostas que eram propositadamente ambíguas, para dar conta
do evento de ambas as maneiras, ou absurdas, pelas intoxicantes emanações do
lugar, o que é muito frequente em cavernas sulfurosas. Às vezes nas folhas das
sibilas, sobre cujas profecias (como talvez as de Nostradamus, pois os
fragmentos atualmente existentes parecem ser invenção de uma época posterior)
havia alguns livros que gozavam de grande reputação no tempo da República
Romana. Às vezes nos insignificantes discursos de loucos, supostamente
possuídos por um espírito divino, ao que chamavam entusiasmo, e a estas
maneiras de predizer acontecimentos se chamava teomancia ou profecia. Às vezes
no aspecto apresentado pelas estrelas ao nascer, o que se chamava horoscopia, e
era considerado parte da astrologia judicial. Às vezes em suas próprias
esperanças e temores, o que se chamava tumomancia ou presságio. Às vezes nas
predições dos bruxos, que pretendiam comunicar-se com os mortos, o que se chama
necromancia, esconjuro e feitiçaria, e não passa de um misto de impostura e
fraude. Às vezes no vôo ou forma de se alimentar casual das aves, o que se
chamava augúrio. Às vezes nas entranhas de um animal sacrificado, o que se
chamava aruspicina. Às vezes nos sonhos. Às vezes no crocitar dos corvos ou no
canto dos pássaros. Às vezes nas linhas do rosto, o que se chamava
metoposcopia, ou pela palmistria nas linhas da mão, ou em palavras casuais, o
que se chamava omina. Às vezes em monstros ou acidentes invulgares, como
eclipses, cometas, meteoros raros, terremotos, inundações, nascimentos
prematuros e coisas semelhantes, a que chamavam portento e ostenta, porque
pensavam que eles prediziam ou pressagiavam alguma grande calamidade futura. Às
vezes no simples acaso, como no jogo de cara ou coroa, ou na contagem do número
de orifícios de um crivo, ou no jogo de escolher versos de Homero e Virgílio, e
em inúmeras outras vãs invenções do gênero. Tão fácil é os homens serem levados
a acreditar em a qualquer coisa por aqueles que gozam de crédito junto deles,
que podem com cuidado e destreza tirar partido de seu medo e ignorância.
Portanto os primeiros
fundadores e legisladores de Estados entre os gentios, cujo objetivo era apenas
manter o povo em obediência e paz, em todos os lugares tiveram os seguintes
cuidados. Primeiro, o de incutir em suas mentes a crença de que os preceitos
que ditavam a respeito da religião não deviam ser considerados como
provenientes de sua própria invenção, mas como os ditames de algum deus, ou
outro espírito, ou então de que eles próprios eram de natureza superior à dos
simples mortais, a fim de que suas leis fossem mais facilmente aceites. Assim,
Numa Pompílio pretendia ter recebido da ninfa Egéria as cerimônias que
instituiu entre os romanos; o primeiro rei e fundador do reino do Peru
pretendia que ele e sua esposa eram filhos do Sol; e Maomé, para estabelecer
sua nova religião, pretendia falar com o Espírito Santo, sob a forma de uma
pomba. Em segundo lugar, tiveram o cuidado de fazer acreditar que aos deuses
desagradavam as mesmas coisas que eram proibidas pelas leis. Em terceiro lugar,
o de prescrever cerimônias, suplicações, sacrifícios e festivais, os quais se
devia acreditar capazes de aplacar a ira dos deuses. Assim, como que da ira dos
deuses resultava o insucesso na guerra, grandes doenças contagiosas,
terremotos, e a desgraça de cada indivíduo; e que essa ira provinha da falta de
cuidado com sua veneração, e do esquecimento ou do equívoco em qualquer aspecto
das cerimônias exigidas. E, embora entre os antigos romanos não fosse proibido
negar aquilo que nos poetas esta escrito sobre os sofrimentos e os prazeres
depois desta vida, que foram abertamente satirizados por vários indivíduos de
grande autoridade e peso nesse Estado, apesar disso, essa crença sempre foi
mais aceita do que rejeitada.
E através destas e outras
instituições semelhantes conseguiam, a serviço de seu objetivo (que era a paz
do Estado), que o vulgo, em ocasiões de desgraça, atribuísse a culpa à falta de
cuidado, ou ao cometimento de erros, em suas cerimônias, ou à sua própria
desobediência às leis, tornando-se assim menos capaz de rebelar-se contra seus
governantes.”
“A natureza fez os homens
tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes
se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais
vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a
diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que
qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não
possa também aspirar, tal como ele.”
“Pois a natureza dos
homens é tal que, embora sejam capazes de reconhecer em muitos outros maior
inteligência, maior eloquência ou maior saber, dificilmente acreditam que haja
muitos tão sábios como eles próprios; porque veem sua própria sabedoria bem de
perto, e a dos outros homens à distância. Mas isto prova que os homens são
iguais quanto a esse ponto, e não que sejam desiguais.
Pois geralmente não há
sinal mais claro de uma distribuição equitativa de alguma coisa do que o fato
de todos estarem contentes com a parte que lhes coube. Desta igualdade quanto à
capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins.
Portanto se dois homens
desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por
ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente
sua própria conservação, e às rezes apenas seu deleite) esforçam-se por se
destruir ou subjugar um ao outro e disto se segue que, quando um invasor nada
mais tem a recear do que o poder de um único outro homem, se alguém planta,
semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provavelmente de esperar que
outros venham preparados com forças conjugadas, para desapossá-lo e privá-lo,
não apenas do fruto de seu trabalho; mas também de sua vida e de sua liberdade.
Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos outros.
Contra esta desconfiança de
uns em relação aos outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a
antecipação; isto é, pela força ou pela astúcia, subjugar as pessoas de todos
os homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao momento em que
não veja qualquer outro poder suficientemente grande para ameaçá-lo. E isto não
é mais do que sua própria conservação exige, conforme é geralmente admitido.
Também por causa de alguns que, comprazendo-se em contemplar seu próprio poder
nos atos de conquista, levam estes atos mais longe do que sua segurança exige,
se outros que, do contrário, se contentariam em manter-se tranquilamente dentro
de modestos limites, não aumentarem seu poder por meio de invasões, eles serão
incapazes de subsistir durante muito tempo, se se limitarem apenas a uma
atitude de defesa. Esse aumento do domínio sobre os homens, sendo necessário
para a conservação de cada um, deve ser por todos admitido, obviamente.”
“Na natureza do homem
encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição;
segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. A primeira leva os homens a
atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira,
a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das
pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos, para
defendê-los; e os terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma
diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente
dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, seus amigos, sua
nação, sua profissão ou seu nome.
Com isto se torna manifesto
que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os
manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama
guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a
guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de
tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida.
Portanto a noção de tempo deve ser levada em conta quanto à natureza da guerra,
do mesmo modo que quanto à natureza do clima. Porque tal como a natureza do mau
tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover
que dura vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste
na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que
não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz.
Portanto tudo aquilo que é
válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o
mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra
segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua
própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu
fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem
uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções
confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de
grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem
artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante
temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre,
sórdida, embrutecida e curta.”
“O direito de natureza, a
que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem
possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de
sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo
aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a
esse fim.
Por liberdade entende-se,
conforme a significação própria da palavra, a ausência de impedimentos externos,
impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o
que quer, mas não podem obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o que
seu julgamento e razão lhe ditarem.”
“Dado que a condição do
homem (conforme foi declarado no capítulo anterior) é uma condição de guerra de
todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua própria razão, e
não havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda
para a preservação de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa
tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos
outros. Portanto, enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as
coisas, não poderá haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a
segurança de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens
viver. Consequentemente é um preceito ou regra geral da razão, que todo homem
deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e
caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra.
A primeira parte desta regra encerra a lei primeira e fundamental de natureza,
isto é, procurar a paz, e segui-la. A segunda encerra a suma do direito de
natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos.
Desta lei fundamental de
natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que procurem a paz,
deriva esta segunda lei: Que um homem concorde, quando outros também o façam, e
na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si
mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação
aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em
relação a si mesmo. Porque enquanto cada homem detiver seu direito de fazer
tudo quanto queira, todos os homens se encontrarão numa condição de guerra. Mas
se os outros homens não renunciarem a seu direito, assim como ele próprio,
nesse caso não há razão para que alguém se prive do seu, pois isso equivaleria
a oferecer-se como presa (coisa a que ninguém é obrigado), e não a dispor-se
para a paz. É esta a lei do Evangelho: Faz aos outros o que queres que te façam
a ti. E esta é a lei de todos os homens: Quod tibi jïeri non vis, alteri ne
feceris.”
“Vivendo num Estado, se eu
me vir forçado a livrar-me de um ladrão prometendo-lhe dinheiro, sou obrigado a
pagá-lo, a não ser que a lei civil disso me dispense. Porque tudo o que posso
fazer legitimamente sem obrigação posso também compactuar legitimamente por
medo, e o que eu compactuar legitimamente não posso legitimamente romper.”
“Porque o testemunho de um
tal acusador, se não for prestado voluntariamente, deve considerar-se
corrompido pela natureza, e portanto não deve ser aceito; e quando o testemunho
de um homem não vai receber crédito, ele não é obrigado a prestá-lo. Também as
acusações arrancadas pela tortura não devem ser aceitas como testemunhos.
Porque a tortura é para ser usada como meio de conjetura, de esclarecimento num
exame posterior e de busca da verdade; e o que nesse caso é confessado
contribui para aliviar quem é torturado, não para informar os torturadores.
Portanto não deve ser aceito como testemunho suficiente porque, quer o
torturado se liberte graças a uma verdadeira ou a uma falsa acusação, o fará
pelo direito de preservar sua vida.”
“Nesta lei de natureza
reside a fonte e a origem da justiça. Porque sem um pacto anterior não há
transferência de direito, e todo homem tem direito a todas as coisas,
consequentemente, nenhuma ação pode ser injusta. Mas, depois de celebrado um
pacto, rompê-lo é injusto. E a definição da injustiça não é outra senão o não
cumprimento de um pacto. E tudo o que não é injusto é justo.
Ora, como os pactos de
confiança mútua são inválidos sempre que de qualquer dos lados existe receio de
não cumprimento, embora a origem da justiça seja a celebração dos pactos, não
pode haver realmente injustiça antes de ser removida a causa desse medo; o que
não pode ser feito enquanto os homens se encontram na condição natural de
guerra. Portanto, para que as palavras “justo” e “injusto” possam ter lugar, é
necessária alguma espécie de poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os
homens ao cumprimento de seus pactos, mediante o terror de algum castigo que seja
superior ao beneficio que esperam tirar do rompimento do pacto, e capaz de
fortalecer aquela propriedade que os homens adquirem por contrato mútuo, como
recompensa do direito universal a que renunciaram. E não pode haver tal poder
antes de erigir-se um Estado. O mesmo pode deduzir-se também da definição comum
da justiça nas Escolas, pois nelas se diz que a justiça é a vontade constante
de dar a cada um o que é seu. Portanto, onde não há o seu, isto é, não há
propriedade, não pode haver injustiça. E onde não foi estabelecido um poder
coercitivo, isto é, onde não há Estado, não há propriedade, pois todos os
homens têm direito a todas as coisas. Portanto, onde não há Estado nada pode
ser injusto. De modo que a natureza da justiça consiste no cumprimento dos
pactos válidos, mas a validade dos pactos só começa com a instituição de um
poder civil suficiente para obrigar os homens a cumpri-los, e é também só aí
que começa a haver propriedade.”
“Portanto quem declarar
que considera razoável enganar aos que o ajudam não pode razoavelmente esperar
outros meios de salvação senão os que dependem de seu próprio poder. Portanto
quem quebra seu pacto, e ao mesmo tempo declara que pode fazê-lo de acordo com
a razão, não pode ser aceito por qualquer sociedade que se constitua em vista
da paz e da defesa, a não ser devido a um erro dos que o aceitam. E se for
aceito não se pode continuar a admiti-lo, quando se vê o perigo desse erro; e
não seria razoável esse homem contar com esses erros como garantia de sua segurança.
Portanto alguém que seja deixado fora ou expulso de uma sociedade esta
condenado a perecer, e se viver nessa sociedade será graças aos erros dos
outros homens, os quais ele não podia prever e com os quais não podia contar,
portanto, contra a razão de sua preservação. Assim, todos os homens que não
contribuem para sua destruição fazem-no apenas por ignorância do que a eles
próprios beneficia.”
“Ainda há outros que,
embora reconhecendo o cumprimento da palavra dada como uma lei de natureza, não
obstante abrem exceção para certas pessoas, tais como os hereges e todos
aqueles que não têm como costume o cumprimento de seus pactos; e também isto é
contra a razão. Pois se qualquer defeito de um homem for suficiente para
dispensá-lo do cumprimento de um pacto, o mesmo deveria ter sido, perante a
razão, suficiente para tê-lo impedido de celebrá-lo.”
“A justiça das ações não
faz com que aos homens se chamem justos, e sim inocentes; e a injustiça das
mesmas (também chamada injúria) faz-lhes atribuir apenas o nome de culpados.”
“O mesmo se passa no
Estado: os homens podem perdoar uns aos outros suas dívidas, mas não os roubos
ou outras violências que lhes causem dano. Porque não pagar uma dívida é uma
injúria feita a eles mesmos, ao passo que o roubo e a violência são injúrias
feitas à pessoa do Estado.”
(por questões de espaço não é possível inserir todo o trecho, mas
atentar para todo o capítulo XV, a partir do parágrafo acima)
“O fim último, causa final
e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os
outros), introduzindo restrições a si mesmos, conforme os vemos viver nos
Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais
satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que
é a consequência necessária (conforme se mostrou) das paixões naturais dos
homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito,
forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito
àquelas leis de natureza que foram expostas nos capítulos décimo quarto e
décimo quinto.
Porque as leis de natureza
(como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, ou, em resumo, fazer aos
outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de
algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas
paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a
vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras,
sem força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de
natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode
fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande
para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas
em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros.”
“Mesmo que haja uma grande
multidão, se as ações de cada um dos que a compõem forem determinadas segundo o
juízo individual e os apetites individuais de cada um, não poderá esperar-se
que ela seja capaz de dar defesa e proteção a ninguém, seja contra o inimigo
comum, seja contra as injúrias feitas uns aos outros. Porque divergindo em
opinião quanto ao melhor uso e aplicação de sua força, em vez de se ajudarem,
só se atrapalham uns aos outros, e devido a essa oposição mútua reduzem a nada
sua força. E devido a tal não apenas facilmente serão subjugados por um pequeno
número que se haja posto de acordo, mas, além disso, mesmo sem haver inimigo
comum, facilmente farão guerra uns aos outros, por causa de seus interesses
particulares. Pois se fosse lícito supor uma grande multidão capaz de consentir
na observância da justiça e das outras leis da natureza, sem um poder comum que
mantivesse a todos em respeito, igualmente o seria supor a humanidade inteira
capaz do mesmo. Nesse caso não haveria, nem seria necessário, qualquer governo
civil, ou qualquer Estado, pois haveria paz sem sujeição.”
“É certo que há algumas
criaturas vivas, como as abelhas e as formigas, que vivem sociavelmente umas
com as outras (e por isso são contadas por Aristóteles entre as criaturas
políticas), sem outra direção senão seus juízos e apetites particulares, nem
linguagem através da qual possam indicar umas às outras o que consideram
adequado para o beneficio comum. Assim, talvez haja alguém interessado em saber
por que a humanidade não pode fazer o mesmo. Ao que tenho a responder o
seguinte.
Primeiro, que os homens
estão constantemente envolvidos numa competição pela honra e pela dignidade, o
que não ocorre no caso dessas criaturas. E é devido a isso que surgem entre os
homens a inveja e o ódio, e finalmente a guerra, ao passo que entre aquelas
criaturas tal não acontece.
Segundo, que entre essas
criaturas não há diferença entre o bem comum e o bem individual e, dado que por
natureza tendem para o bem individual, acabam por promover o bem comum. Mas o
homem só encontra felicidade na comparação com os outros homens, e só pode
tirar prazer do que é eminente.
Terceiro, que, como essas
criaturas não possuem (ao contrário do homem) o uso da razão, elas não veem nem
julgam ver qualquer erro na administração de sua existência comum. Ao passo que
entre os homens são em grande número os que se julgam mais sábios, e mais
capacitados que os outros para o exercício do poder público. E esses se
esforçam por empreender reformas e inovações, uns de uma maneira e outros de
outra, acabando assim por levar o país à desordem e à guerra civil.
Quarto, que essas
criaturas, embora sejam capazes de certo uso da voz, para dar a conhecer umas
às outras seus desejos e outras afecções, apesar disso, carecem daquela arte
das palavras mediante a qual alguns homens são capazes de apresentar aos outros
o que é bom sob a aparência do mal, e o que é mau sob a aparência do bem; ou
então aumentando ou diminuindo a importância visível do bem ou do mal, semeando
o descontentamento entre os homens e perturbando a seu bel-prazer a paz em que
os outros vivem.
Quinto, as criaturas
irracionais são incapazes de distinguir entre injúria e dano, e
consequentemente basta que estejam satisfeitas para nunca se ofenderem com seus
semelhantes. Ao passo que o homem é tanto mais implicativo quanto mais
satisfeito se sente, pois é neste caso que tende mais para exibir sua sabedoria
e para controlar as ações dos que governam o Estado.
Por último, o acordo
vigente entre essas criaturas é natural, ao passo que o dos homens surge apenas
através de um pacto, isto é, artificialmente. Portanto não é de admirar que
seja necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e
duradouro seu acordo: ou seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e
que dirija suas ações no sentido do beneficio comum.
A única maneira de
constituir um poder comum, capaz de defender a comunidade das invasões dos
estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança
suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra,
possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um
homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades,
por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um
homem ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas,
considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que
aquele que representa sua pessoa praticar ou vier a realizar, em tudo o que
disser respeito à paz e segurança comuns. Todos submetendo assim suas vontades
à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. Isto é mais do que
consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e
mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um
modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: cedo e transfiro meu
direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de
homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de
maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa
só pessoa se chama Estado, em latim civitas.
Esta é a geração daquele
enorme Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus
Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois
graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe
conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna
capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio
país, e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros.
É nele que consiste a
essência do estado, a qual pode ser assim definida: “Uma grande multidão
institui a uma pessoa, mediante pactos recíprocos uns com os outros, para em
nome de cada um como autora, poder usar a força e os recursos de todos, da
maneira que considerar conveniente, para assegurara paz e a defesa comum.
Soberano é aquele que
representa essa pessoa. Dele se diz que possui poder soberano. Todos os
restantes são súditos.
O poder soberano pode ser
adquirido de duas maneiras. Uma delas é a força natural, como quando um homem
obriga seus filhos a submeterem-se, e a submeterem seus próprios filhos, a sua
autoridade, na medida em que é capaz de destruí-los em caso de recusa. Ou como
quando um homem sujeita através da guerra seus inimigos a sua vontade, concedendo-lhes
a vida com essa condição. A outra é quando os homens concordam entre si em
submeterem-se a um homem, ou a uma assembleia de homens, voluntariamente, com a
esperança de serem protegidos por ele contra todos os outros. Este último pode
ser chamado um Estado Político, ou um Estado por instituição. Ao primeiro pode
chamar-se um Estado por aquisição.”
“O detentor do poder
soberano não pode justamente ser morto, nem de qualquer outra maneira pode ser
punido por seus súditos.”
“Isso sem levar em conta
que a condição do homem nunca pode deixar de ter uma ou outra incomodidade, e
que a maior que é possível cair sobre o povo em geral, em qualquer forma de
governo, é de pouca monta quando comparada com as misérias e horríveis calamidades
que acompanham a guerra civil, ou aquela condição dissoluta de homens sem
senhor, sem sujeição às leis e a um poder coercitivo capaz de atar suas mãos,
impedindo a rapina e a vingança. E também sem levar em conta que o que mais
impulsiona os soberanos governantes não é qualquer prazer ou vantagem que
esperem recolher do prejuízo ou debilitamento causado a seus súditos, em cujo
vigor consiste sua própria força e glória, e sim a obstinação daqueles que,
contribuindo de má vontade para sua própria defesa, tornam necessário que seus
governantes deles arranquem tudo o que podem em tempo de paz, a fim de obterem
os meios para resistir ou vencer a seus inimigos, em qualquer emergência ou
súbita necessidade. Porque todos os homens são dotados por natureza de grandes
lentes de aumento (ou seja, as paixões e o amor de si), através das quais todo
pequeno pagamento aparece como um imenso fardo; mas são destituídos daquelas
lentes prospectivas (a saber, a ciência moral e civil) que permitem ver de
longe as misérias que os ameaçam, e que sem tais pagamentos não podem ser
evitadas.”
“Quem quer que considere
demasiado grande o poder soberano, procurará fazer que ele se torne menor, e
para tal precisará submeter-se a um poder capaz de limitá-lo. Isto é, a um
poder ainda maior.”
“Assim, nunca um grande
Estado popular se conservou, a não ser graças a um inimigo exterior que uniu
seu povo, ou graças à reputação de algum homem eminente em seu seio, ou ao
conselho secreto de uns poucos, ou ao medo recíproco de duas facções
equivalentes, mas nunca graças à consulta aberta da assembleia. Quanto aos
Estados muito pequenos, sejam eles populares ou monárquicos, não há sabedoria
humana capaz de conservá-los para além do que durar a rivalidade entre seus
poderosos vizinhos.”
“Os milagres são feitos
maravilhosos, mas o que é maravilhoso para um pode não sê-lo para outro. A
santidade pode ser fingida, e os sucessos visíveis deste mundo são as mais das
vezes obra de Deus através de causas naturais e vulgares. Portanto ninguém pode
infalivelmente saber pela razão natural que alguém recebeu uma revelação
sobrenatural da vontade de Deus. Pode, quando muito, ter uma crença e, conforme
seus sinais pareçam maiores ou menores, ser uma crença mais firme ou uma crença
mais frágil.”
“Algum defeito de
entendimento, algum erro de raciocínio ou alguma brusca força das paixões é a
fonte de todo crime. O defeito de entendimento é ignorância, e o de raciocínio
é opinião errônea.”
“Aqueles que enganam com a
esperança de não serem descobertos, geralmente se enganam a si mesmos (as
trevas em que pensam estar escondidos não são mais do que sua própria
cegueira), e não são mais sábios do que as crianças que pensam esconder-se
quando tapam seus próprios olhos.”
“Poucos são os crimes que não podem ser
resultado da ira.”
“Expus até aqui a natureza
do homem (cujo orgulho e outras paixões o obrigaram a submeter-se ao governo),
juntamente com o grande poder de seu governante, ao qual comparei com o
Leviatã, tirando essa comparação dos dois últimos versículos do capítulo 41 de
Jó, onde Deus, após ter estabelecido o grande poder do Leviatã, lhe chamou Rei
dos Soberbos. “Não há nada na Terra”, disse ele, “que se lhe possa comparar.
Ele é feito de maneira a nunca ter medo. Ele vê todas as coisas abaixo dele, e
é o Rei de todos os Filhos da Soberba.”
“Não existe nesta vida
nenhuma ação do homem que não seja o começo de uma cadeia de consequências tão
longa que nenhuma providência humana é suficientemente alta para dar ao homem
uma ideia do final. E nesta cadeia estão ligados acontecimentos agradáveis e
desagradáveis, de tal maneira que quem quiser fazer alguma coisa para seu
prazer tem de aceitar sofrer todas as dores a ele ligadas. Dores estas que são
as punições naturais daquelas ações que são o início de um mal maior que o bem.
E daqui resulta que a intemperança é naturalmente castigada com doenças, a
precipitação com desastres, a injustiça com a violência dos inimigos, o orgulho
com a ruína, a covardia com a opressão, o governo negligente dos príncipes com
a rebelião, e a rebelião com a carnificina.”
“Quanto a quem foram os
autores originais dos vários livros das Sagradas Escrituras, é coisa que não
foi tornada evidente por qualquer suficiente testemunho ou outra história (que
é a única prova em matéria de fato), nem pode sê-lo por quaisquer argumentos da
razão natural, pois a razão não serve para convencer da verdade dos fatos, mas
apenas da verdade das consequências.”
“E consequentemente que é
agora legítimo o soberano punir alguém que oponha o espírito particular às
leis, pois o rei ocupa o mesmo lugar no Estado que Abraão ocupava em sua
própria família.
Do mesmo deriva também um
terceiro ponto: que assim como ninguém, exceto Abraão em sua família, também
ninguém exceto o soberano num Estado cristão pode conhecer o que é, ou o que
não é a palavra de Deus. Pois Deus falou apenas a Abraão e só ele podia saber o
que Deus disse e interpretar isso para a família. E, portanto, também aqueles
que ocupam o lugar de Abraão num Estado são os únicos intérpretes daquilo que
Deus falou.”
“Mas aqui alguém poderá
perguntar se nesse tempo os pastores eram obrigados a viver de contribuições
voluntárias, como de esmolas. Pois quem (disse São Paulo, 1 Cor 9,7) vai para a
guerra à sua própria custa? Quem alimenta o rebanho, e não bebe o leite do
rebanho? E também, “Não sabeis que os que ministram sobre coisas sagradas vivem
das coisas do templo, e que os que ajudam no altar partilham do altar?”. Quer
dizer, recebem parte do que é oferecido no altar, para seu sustento. E conclui
então: “E assim o Senhor determinou que os que pregam o Evangelho vivam do
Evangelho”. Desta passagem pode sem dúvida inferir-se que os pastores da Igreja
deviam ser sustentados por seus rebanhos, mas não competia aos pastores
determinar a quantidade ou a espécie de seus emolumentos, como quem numa
partilha decide seu próprio quinhão. Portanto, seus emolumentos deviam
necessariamente ser determinados pela gratidão e liberalidade de cada um dos
membros de seu rebanho, ou então pela congregação inteira. Mas não podia ser
pela congregação inteira, pois nessa época as decisões desta não eram leis.
Portanto, o sustento dos pastores, antes de os imperadores e soberanos civis o
determinarem por lei, não era mais do que a benevolência. Os que serviam no
altar viviam do que lhes era oferecido. E também os pastores podem aceitar o
que lhes é oferecido por seu rebanho, mas não podem exigir o que não lhes é
oferecido. A que juízes podiam recorrer, se não tinham tribunais? Ou, se entre
eles tinham árbitros, quem podia executar suas sentenças, visto que não tinham
poder para armar seus funcionários? Resta portanto apenas a congregação inteira
como podendo atribuir a quaisquer pastores da Igreja um sustento certo, e mesmo
isto somente no caso de seus decretos terem a força de leis (e não apenas de
cânones), leis essas que só poderiam ser feitas pelos imperadores, reis e
outros soberanos civis. O direito dos dízimos da lei de Moisés não podia ser
aplicado aos ministros do Evangelho desse tempo, porque Moisés e os Sumos
Sacerdotes eram os soberanos civis do povo, abaixo de Deus, cujo Reino entre os
judeus era presente, ao passo que o Reino de Deus pelo Cristo ainda está para
vir.”
“Portanto, todo aquele que
desejar sinceramente cumprir as ordens de Deus, ou que se arrepender
verdadeiramente de suas transgressões, ou que amar a Deus com todo o seu
coração, e ao próximo como a si mesmo, tem toda a obediência necessária à sua
entrada no reino de Deus, pois se Deus exigisse uma inocência perfeita não
haveria carne que se salvasse.”
“As leis de Deus,
portanto, nada mais são do que as leis de natureza, a principal das quais é que
não devemos violar a nossa fé, isto é, uma ordem para obedecer aos nossos
soberanos civis, que constituímos acima de nós por um pacto mútuo. E esta lei
de Deus que ordena a obediência à lei civil ordena por consequência a
obediência a todos os preceitos da Bíblia, a qual (como mostrei no capítulo
precedente) é a única lei naqueles lugares onde o soberano civil assim o
estabeleceu, e nos outros lugares é apenas conselho, que cada um, por sua conta
e risco, pode sem injustiça recusar obedecer.”
“A parte mais escura do
reino de Satanás é aquela que se encontra fora da Igreja de Deus, isto é, entre
aqueles que não acreditam em Jesus Cristo, mas não podemos dizer que a Igreja
goza portanto (como a terra de Goshen) de toda a luz necessária para a
realização da obra que Deus nos destinou. Como explicar que na cristandade
tenha sempre havido, quase desde os tempos dos apóstolos, tantas lutas para se
expulsarem uns aos outros de seus lugares, quer por meio de guerra externa,
quer por meio de guerra civil? Tanto estrebuchar a cada pequena aspereza da
própria fortuna, e a cada pequena eminência na dos outros homens? E tanta
diversidade na maneira de correr para o mesmo alvo, a felicidade, como se não
fosse noite entre nós, ou pelo menos neblina? Estamos portanto ainda nas
trevas.”
“Constitui também vã e
falsa filosofia dizer que o casamento repugna à castidade, ou continência, e
portanto, transformá-lo em vício moral, como o fazem aqueles que alegam
castidade e continência para negarem o casamento do clero. Pois confessam que
se trata apenas de uma constituição da Igreja que exige daquelas ordens
sagradas que continuamente servem o altar e administram a eucaristia uma
contínua abstinência de mulheres sob a alegação de contínua castidade,
continência e pureza. Portanto, chamam ao legítimo uso da esposa falta de
castidade e de continência, e assim fazem do casamento um pecado, ou pelo menos
uma coisa tão impura e suja que torna um homem impróprio para o altar. Se a lei
fosse feita porque o uso de mulheres é incontinência e contrário à castidade,
então todo o casamento seria vício. Se é porque se trata de uma coisa demasiado
impura e suja para um homem consagrado a Deus, muito mais outras ocupações
naturais, necessárias e diárias que todos os homens têm, tornariam os homens
impróprios para serem padres, porque são muito mais sujas.”
“As fadas, seja qual for a
nação onde habitem, só têm um rei universal, que alguns de nossos poetas
denominam rei Oberon, mas as Escrituras denominam Belzebu, príncipe dos
demônios. Do mesmo modo os eclesiásticos, seja qual for o domínio em que se
encontrem, só reconhecem um rei universal, o Papa.
Os eclesiásticos são homens
espirituais e padres fantasmagóricos. As fadas são espíritos e fantasmas. As
fadas e os fantasmas habitam as trevas, as solidões e os túmulos. Os
eclesiásticos caminham na obscuridade da doutrina, em mosteiros, igrejas e
claustros.
Os eclesiásticos têm suas
igrejas catedrais, as quais, seja qual for a vila onde são erguidas, por
virtude da água benta e de certos encantos denominados exorcismos, possuem o
poder de transformar essas vilas em cidades, isto é, em sedes do império.
Também as fadas têm seus castelos encantados e alguns fantasmas gigantescos que
dominam as regiões circunvizinhas.
As fadas não podem ser
presas nem levadas a responder pelo mal que fazem. Do mesmo modo os
eclesiásticos desaparecem dos tribunais da justiça civil.
Os eclesiásticos tiram dos
jovens o uso da razão por meio de certos encantos compostos de metafísica e
milagres e tradições e Escrituras deturpadas, pelo que estes ficam incapazes
seja para o que for, exceto para executarem aquilo que lhes for ordenado. Do
mesmo modo as fadas, segundo se diz, tiram as crianças de seus berços e
transformam-nas em loucos naturais, a que o vulgo chama duendes e que têm
tendência para praticar o mal.
As velhas contadeiras de
histórias não especificaram em que oficina ou laboratório as fadas fabricam
seus encantamentos, mas os laboratórios do clero são bem conhecidos como sendo
as Universidades que receberam sua disciplina da autoridade pontifícia.
Quando alguém desagrada às
fadas, diz-se que estas enviam seus duendes para beliscá-lo. Os eclesiásticos,
quando algum Estado civil lhes desagrada, também mandam seus duendes, isto é,
súditos supersticiosos e encantados para beliscar em seus príncipes, pregando a
sedição, ou um príncipe encantado com promessas para beliscar outro.
As fadas não se casam, mas
entre elas há incubi, que copulam com gente de carne e osso. Os padres também
não se casam.
Os eclesiásticos tiram a
nata da terra por meio de donativos de homens ignorantes que têm medo deles e
por meio de dízimos; o mesmo acontece na fábula das fadas, segundo a qual elas
entram nas leiterias e se banqueteiam com a nata que retiram do leite.
A história também não conta
que tipo de dinheiro corre no reino das fadas. Mas os eclesiásticos, naquilo
que recebem, aceitam a mesma moeda que nós, muito embora, quando têm de fazer
algum pagamento, o façam com canonizações, indulgências e missas.
A estas e outras semelhanças entre o Papado
e o reino das fadas se pode acrescentar mais uma, que assim como as fadas só
têm existência na fantasia de gente ignorante, que se alimenta das tradições
contadas pelas velhas ou pelos antigos poetas, também o poder espiritual do
Papa (fora dos limites de seu próprio domínio civil) consiste apenas no medo,
em que se encontra o povo seduzido, de ser excomungado, por ouvir os falsos
milagres, as falsas tradições e as falsas interpretações das Escrituras.”
“Contudo penso que nada é
devido à antiguidade em si, pois se reverenciamos a época, a presente é a mais
antiga. Se se tratar da antiguidade do autor, não tenho certeza de que aqueles
a quem dão tal honra fossem mais antigos quando escreveram do que eu que estou
escrevendo. Mas se atentarmos bem, o louvor dos autores antigos resulta, não do
respeito dos mortos, mas sim da competição e da inveja mútua dos vivos.”