Livro 01.
Capítulo 1
"Era como se tudo naquela saída berrasse para mim dizendo que ali não era o meu lugar. As escadas se desfazendo, aquele alvoroço de clientes briguentos, e o ar, uma mescla de suor, sangue e mofo. As vozes viravam borrões enquanto as pessoas gritavam números e nomes, num constante vaivém, acotovelando-se para trocar dinheiro e gesticulando para se comunicar em meio a tanto barulho. Passei espremida pela multidão, logo atrás da minha melhor amiga.
— Deixe o dinheiro na carteira,
Abby! — América gritou para mim.
Seu largo sorriso reluzia mesmo sob
aquela fraca iluminação.
— Fiquem por perto! Vai ficar pior
assim que começar! — Shepley avisou, bem alto para ser ouvido.
América segurou a mão dele e depois
a minha, enquanto Shepley nos guiava em meio àquele mar de gente.
O som agudo de um megafone cortou o
ar repleto de fumaça. O ruído me deixou alarmada. Tive um sobressalto e comecei
a procurar de onde vinha aquela rajada sonora. Um homem estava em pé sobre uma
cadeira de madeira, com um rolo de dinheiro em uma das mãos e o megafone na
outra, colado à boca.
— Sejam bem-vindos ao banho de
sangue! Se estão em busca de uma aula de economia... estão na merda do lugar
errado, meus amigos! Mas se buscam O Círculo, aqui é a meca! Meu nome é Adam.
Sou eu que faço as regras e convoco as lutas. As apostas terminam assim que os
oponentes estiverem no chão. Nada de encostar nos lutadores, nem ajudar, nem
mudar a aposta no meio da luta, muito menos invadir o ringue. Se quebrarem
essas regras, vocês serão esmagados, espancados e jogados pra fora sem nenhum
dinheiro e isso vale pra vocês também, meninas. Então, não usem suas putinhas
para fraudar o sistema, caras!
Shepley balançou a cabeça.
— Que é isso, Adam!
— ele gritou para o mestre de cerimônias, em clara desaprovação à escolha de
palavras do amigo.
Meu coração batia
forte dentro do peito. Com um cardigã de cashmere cor-de-rosa e brincos de pérola,
me sentia uma velha professora nas praias da Normandia. Eu havia prometido a
América que conseguiria lidar com o que quer que acontecesse com a gente, mas,
naquele lugar imundo, senti uma necessidade urgente de agarrar seu braço magro
com ambas as mãos. Ela não me colocaria em perigo, mas estar em um porão com
mais ou menos cinquenta universitários bêbados, sedentos por sangue e
dinheiro... Bem, eu não estava exatamente confiante quanto às nossas chances de
sair dali ilesas.
Depois que América
conheceu Shepley durante a recepção aos calouros, com frequência ela o
acompanhava às lutas secretas que aconteciam em diferentes porões da
Universidade Eastern. Cada evento era realizado em um local diferente, que
permanecia secreto até exatamente uma hora antes da luta.
Como eu frequentava
círculos bem mais comportados, fiquei surpresa ao tomar conhecimento do
submundo da Eastern; mas Shepley já sabia daquele mundo antes mesmo de ter se
juntado a ele. Travis, o primo e colega de quarto dele, participara de sua primeira
luta sete meses atrás. Como calouro, os rumores diziam que ele era o competidor
mais letal que Adam tinha visto nos três anos desde a criação do Círculo.
Quando começou o segundo ano, Travis era imbatível. Juntos, ele e Shepley
pagavam o aluguel e as contas com o que ganhavam nas lutas, fácil, fácil.
Adam levou o
megafone à boca de novo, e os gritos e movimentos aumentaram em um ritmo
febril.
— Nesta noite temos
um novo desafiante! O lutador de luta livre e astro da Bastem, Marek Young!
Seguiram-se
aplausos e gritos eufóricos da torcida. A multidão se partiu como o mar
Vermelho quando Marek entrou na sala. Formou-se um círculo, como uma clareira,
e a galera assobiava, vaiava e zombava do concorrente. Ele deu uns pulinhos
para se preparar e girou o pescoço de um lado para o outro; o rosto estava
sério e compenetrado. A multidão se aquietou, só restando um rugido abafado.
Levantei as mãos depressa para tampar os ouvidos quando a música começou a
retumbar, altíssima, nos grandes alto-falantes do outro lado da sala.
— Nosso próximo
lutador dispensa apresentações, mas, como eu morro de medo dele, vou apresentar
o cara mesmo assim! Tremam nas bases, rapazes, e fiquem de quatro, meninas! Com
vocês, Travis “Cachorro Louco” Maddox!
Houve uma explosão
de sons quando Travis apareceu do outro lado da sala, sem camisa, relaxado e
confiante. Foi caminhando a passos largos até o centro do círculo, como se
estivesse se apresentando para mais um dia de trabalho. Com os músculos firmes
estirados sob a pele tatuada, cumprimentou Marek, estalando os punhos cerrados
nos nós dos dedos do oponente. Travis se inclinou para frente e sussurrou algo
no ouvido de Marek, que fez um grande esforço para manter a expressão austera.
Ele estava muito próximo de Travis, pronto para o combate. Os dois se
encaravam. A expressão de Marek era assassina; Travis parecia achar um pouco de
graça em tudo aquilo.
Os adversários
deram uns passos para trás, e Adam fez o som que dava início à luta. Marek
assumiu uma postura defensiva e Travis partiu para o ataque. Fiquei na ponta
dos pés quando perdi a linha de visão, apoiando-me em quem quer que fosse para
conseguir enxergar melhor o que estava acontecendo. Consegui ver alguns
centímetros acima, deslizando por entre a multidão que gritava. Cotovelos
golpeavam as laterais do meu corpo e ombros esbarravam em mim, fazendo com que
eu ricocheteasse de um lado para o outro, como uma bolinha de pinball. Quando
consegui ver o topo da cabeça de Marek e Travis, continuei abrindo caminho na
base do empurrão.
Quando enfim
cheguei lá na frente, Marek tinha agarrado Travis com seus braços grossos e
tentava jogá-lo no chão. Quando ele se inclinou para fazer esse movimento,
Travis deu uma joelhada no rosto de Marek. Antes que ele pudesse se recuperar,
Travis o atacou — repetidas vezes, os punhos cerrados socavam o rosto
ensanguentado de Marek.
Senti cinco dedos
se afundarem em meu braço e virei à cabeça para ver quem era.
— Que diabos você
está fazendo aqui, Abby? — disse Shepley.
— Não consigo ver
nada lá de trás!— gritei em resposta.
E então me virei
bem a tempo de ver Marek tentar acenar Travis com um soco poderoso, ao que este
se virou. Por um instante, achei que ele tinha desviado de outro golpe, mas ele
fez um círculo completo e esmagou com o cotovelo o nariz do adversário. Cotas
de sangue borrifaram o meu rosto e se espalharam no meu cardigã. Marek caiu no
chão de cimento com um som oco, e, por um breve momento, a sala ficou
totalmente em silêncio.
Adam jogou um
quadrado de pano vermelho sobre o corpo caído de Marek, e a multidão explodiu.
O dinheiro mudou de mãos novamente, e as expressões se dividiam entre
orgulhosos e frustrados.
Fui empurrada com
todo aquele movimento de gente indo e vindo. América gritou meu nome de algum
lugar lá atrás, mas eu estava hipnotizada pela trilha vermelha que ia do meu
peito até a cintura.
Um pesado par de
botas pretas parou diante de mim, desviando minha atenção para o chão. Meus
olhos foram se voltando para cima: jeans manchado de sangue, músculos
abdominais bem definidos, um peito tatuado ensopado de suor e, finalmente, um
par de cálidos olhos castanhos. Fui empurrada, mas Travis me segurou pelo braço
antes que eu caísse.
— Ei! Cuidado com
ela! — ele franziu a testa, enxotando qualquer um que chegasse perto de mim.
A expressão séria
se derreteu em um sorriso quando ele viu minha blusa. Limpando meu rosto com
uma toalha, ele me disse:
— Desculpe por
isso, Beija-Flor.
Adam deu uns
tapinhas na nuca de Travis.
— Vamos lá,
Cachorro Louco! Tem uma galera esperando por você!
Os olhos dele não
se desviaram dos meus.
— Uma pena ter
manchado seu suéter. Fica tão bem em você...
No instante
seguinte, ele foi engolfado pelos fãs, desaparecendo da mesma maneira como
tinha aparecido.
— No que você
estava pensando, sua imbecil? — gritou América, me puxando pelo braço.
— Vim até aqui para
ver uma luta, não foi? — respondi, sorrindo.
— Você nem devia
estar aqui, Abby — disse Shepley em tom de bronca.
— Nem a América —
retruquei.
— Mas ela não tenta
pular dentro do círculo! — disse ele, franzindo a testa. —Vamos!
América sorriu para
mim e limpou meu rosto.
— Você é um pé no
saco, Abby, mas mesmo assim eu te amo! Ela me abraçou e fomos embora.
América me
acompanhou até o quarto, no dormitório da faculdade, e olhou com desprezo para
minha colega, Kara. Imediatamente tirei o cardigã e o joguei no cesto de roupa
suja.
— Que nojo! Por
onde você andou? — Kara perguntou, sem sair da cama.
Olhei para América,
que deu de ombros.
— Sangramento de
nariz. Você nunca viu os famosos sangramentos de nariz da Abby?
Kara ajeitou os
óculos e balançou a cabeça em negativa.
— Ah, então vai ver
— ela disse, dando uma piscadela para mim e fechando a porta depois de sair.
Nem um minuto tinha se passado e ouvi o som indicando uma mensagem de texto no
meu celular. Como de costume, era América me enviando uma mensagem segundos
depois de nos despedirmos.
vou ficar com o
shep t vejo amanhã rainha do ringue
Dei uma espiada em
Kara, que me olhava como se sangue fosse jorrar do meu nariz a qualquer
instante.
— Ela estava
brincando — falei.
Kara assentiu com
indiferença e depois baixou o olhar para a bagunça de livros espalhados na
cama.
— Acho que vou
tomar um banho — falei, pegando uma toalha e meu nécessaire.
— Vou avisar os
jornais — ela respondeu, sem emoção alguma na voz e mantendo a cabeça baixa.
No dia seguinte,
fui almoçar com Shepley e América. Eu queria ficar sozinha, mas, conforme os
alunos foram entrando no refeitório, as cadeiras à minha volta foram ficando
cheias de amigos da fraternidade do Shepley e de membros do time de futebol
americano. Alguns estavam na luta, mas ninguém mencionou minha experiência na
beira do ringue.
— Shep — disse
alguém que passava.
Shepley assentiu, e
tanto América quanto eu nos viramos e vimos Travis se sentando em um lugar na
ponta oposta da mesa. Duas voluptuosas loiras tingidas com camiseta da Sigma
Kappa o acompanhavam. Uma delas se sentou no colo dele, e a outra lhe
acariciava a camisa.
— Acho que acabei
de vomitar um pouquinho — murmurou América.
A loira que estava
no colo do Travis se virou para ela:
— Eu ouvi o que
você disse, piranha.
América pegou um
pãozinho e o jogou, errando por muito pouco o rosto da garota. Antes que a
loira pudesse dizer mais alguma coisa, Travis abriu as pernas e a garota caiu
no chão.
— Ai! — disse ela
em um grito agudo, erguendo o olhar para Travis.
— A América é minha
amiga. Você precisa encontrar outro colo pra se sentar, Lex.
— Travis! — ela
reclamou, esforçando-se para ficar em pé.
Ele voltou à
atenção para o prato, ignorando a garota, que olhou para a irmã e bufou de
raiva. As duas foram embora de mãos dadas.
Travis deu uma
piscadela para América e, como se nada tivesse acontecido, enfiou mais uma
garfada na boca. Foi aí que notei um pequeno corte na sobrancelha dele. Ele e
Shepley trocaram olhares de relance, e então ele começou uma conversa com um
dos caras do futebol do outro lado da mesa.
Embora a quantidade
de pessoas à mesa tivesse diminuído, América, Shepley e eu ficamos lá ainda um
tempo para discutir nossos planos para o fim de semana. Travis se levantou como
se fosse embora, mas parou na nossa ponta da mesa.
— Que foi? —
Shepley perguntou em voz alta, colocando a mão perto do ouvido.
Tentei ignorá-lo
quanto pude, mas, quando ergui o olhar, Travis estava me encarando.
— Você conhece ela,
Trav. A melhor amiga da América, lembra? Ela estava com a gente na outra noite
— disse Shepley.
Travis sorriu para
mim, no que presumi ser sua expressão mais charmosa. Ele transbordava sexo e
rebeldia, com aqueles antebraços tatuados e os cabelos castanhos cortados bem
rente à cabeça. Revirei os olhos à sua tentativa de me seduzir.
— Desde quando você
tem uma melhor amiga, Mare? — perguntou Travis.
— Desde o penúltimo
ano da escola — ela respondeu, pressionando os lábios enquanto sorria na minha
direção. — Você não lembra, Travis? Você destruiu o suéter dela.
Ele sorriu.
— Eu destruo muitos
suéteres.
— Que nojo -
murmurei.
Travis girou a
cadeira vazia que estava ao meu lado e se sentou, descansando os braços à sua
frente.
— Então você é a
Beija-Flor, né?
— Não — respondi
com raiva —, eu tenho nome.
Ele parecia se
divertir com a forma como eu o encarava, o que só servia para me deixar mais
irritada.
— Tá. E qual é seu
nome? — ele me perguntou.
Dei uma mordida no
que tinha sobrado da maçã no meu prato, ignorando-o.
— Então vai ser
Beija-Flor — disse ele, dando de ombros.
Ergui o olhar de
relance para a América, depois me virei para o Travis:
— Estou tentando
comer.
Ele topou o desafio
que apresentei.
— Meu nome é
Travis. Travis Maddox.
Revirei os olhos.
— Sei quem você é.
— Sabe, é? — ele
falou, erguendo a sobrancelha ferida.
— Não seja tão convencido.
É difícil não perceber quando cinquenta bêbados entoam seu nome.
Travis se
endireitou na cadeira, ficando um pouquinho mais alto.
— Isso acontece
muito comigo.
Revirei os olhos de
novo e ele deu uma risadinha abafada.
— Você tem um
tique?
— Um quê?
— Um tique. Seus
olhos ficam se revirando.
Travis riu de novo
quando olhei com ódio para ele.
— Mas são olhos
incríveis — ele disse, inclinando-se e ficando a pouquíssimos centímetros do
meu rosto. — De que cor eles são? Cinza?
Baixei o olhar para
o prato, criando uma espécie de cortina entre a gente com as longas mechas do
meu cabelo cor de caramelo. Eu não gostava da forma como ele me fazia sentir
quando estava tão perto. Não queria ser como as outras milhares de garotas da
Eastern, que ficavam ruborizadas na presença dele. Não queria que ele mexesse
comigo daquele jeito. De jeito nenhum.
— Nem pense nisso,
Travis. Ela é como uma irmã pra mim —América avisou.
— Baby — Shepley
disse a ela —, você acabou de lhe dizer não. Agora é que ele não vai parar.
— Você não faz o
tipo dela — América disse, mudando de estratégia.
Travis se fez de
ofendido.
— Eu faço o tipo de
todas!
Lancei um olhar
para ele e sorri.
— Ah! Um sorriso.
Não sou um canalha completo no fim das contas — ele disse e piscou. — Foi um
prazer conhecer você, Flor.
E, dando a volta na
mesa, ele se inclinou para dizer algo no ouvido de América.
Shepley jogou uma
batata frita no primo.
— Tire a boca da
orelha da minha garota, Trav!
— Conexões! Estou
criando conexões — Travis foi andando de costas, com as mãos para cima em um
gesto inocente.
Algumas garotas o
seguiram, dando risadinhas e passando os dedos nos cabelos na tentativa de
chamar sua atenção. Ele abriu a porta para elas, que quase gritaram de prazer.
América deu risada.
— Ah, não. Você
está numa enrascada, Abby.
— O que foi que ele
disse? — perguntei, temerosa.
— Ele quer que você
leve a Abby ao nosso apartamento, não é? — disse Shepley.
América confirmou
com um sinal de cabeça e ele negou com outro.
— Você é uma garota
inteligente, Abby. Estou te avisando. Se você cair no papo dele e depois acabar
ficando brava, não venha descontar em mim e na América, certo?
Eu sorri e disse:
— Não vou cair na
dele, Shep. Você acha que eu pareço uma daquelas Barbies gêmeas?
— Ela não vai cair
na dele — América confirmou, tranquilizando Shep e encostando no braço dele.
— Não é a primeira
vez que passo por uma dessas, Mare. Você sabe quantas vezes ele ferrou as
coisas pro meu lado por causa de transas de uma noite com a melhor amiga da
minha namorada? De repente, vira conflito de interesse sair comigo, porque
seria confraternizar com o inimigo! Estou te falando, Abby — ele olhou para
mim. — Não venha me dizer depois que a Mare não pode ir no meu apartamento nem
ser minha namorada porque você caiu no papo do Trav. Considere-se avisada.
— Desnecessário,
mas obrigada — respondi.
Tentei tranquilizar
Shepley com um sorriso, mas o pessimismo dele era resultado de muitos anos de
prejuízo por causa do Travis.
América se despediu
de mim com um aceno, saindo com Shepley enquanto eu seguia para a aula da
tarde. Apertei os olhos para enxergar sob o sol brilhante, segurando com força
as tiras da mochila. A Eastern era exatamente o que eu esperava, desde as salas
de aula menores até os rostos desconhecidos. Era um novo começo para mim.
Finalmente eu podia andar em algum lugar sem os sussurros daqueles que sabiam —
ou achavam que sabiam — alguma coisa do meu passado. Eu era tão comum quanto
qualquer outra caloura ingênua e estudiosa, sem ninguém para me encarar, sem
boatos, nada de pena ou julgamento. Apenas a ilusão do que eu queria que
vissem: a Abby Abernathy que vestia cashmere sem nenhum resquício de
insensatez.
Coloquei a mochila
no chão e desabei na cadeira, me curvando para pegar o laptop na mochila.
Quando ergui a cabeça para colocá-lo na mesa, Travis se sentou sorrateiramente
na carteira ao lado.
— Que bom. Você
pode tomar notas pra mim — disse ele, mordendo uma caneta e sorrindo, sem
dúvida com o máximo de seu charme.
Meu olhar para ele
foi de desprezo.
— Você nem está
matriculado nessa aula...
— Claro que estou!
Geralmente eu sento lá — disse ele, apontando com a cabeça para a última
fileira.
Um pequeno grupo de
garotas estava me encarando, e percebi que havia uma cadeira vazia bem no meio
delas.
— Não vou anotar
nada pra você — eu disse, ligando o computador. Travis se inclinou tão perto de
mim que eu podia sentir sua respiração na minha bochecha.
— Me desculpa...
Ofendi você de alguma maneira?
Soltei um suspiro e
fiz que não com a cabeça.
— Então qual é o
problema?
Mantive o tom de
voz baixo.
— Não vou transar
com você. Pode desistir.
Um lento sorriso se
formou em seu rosto antes de ele se pronunciar.
— Não pedi para
você transar comigo — pensativo, os olhos dele se voltaram para o teto —, ou
pedi?
— Não sou uma
dessas Barbies gêmeas nem uma de suas fãs ali — respondi, olhando de relance
para as garotas atrás de nós. — Não estou impressionada com as suas tatuagens,
nem com o seu charme de garotinho, nem com a sua indiferença forçada, então
pode parar com as gracinhas, ok?
— Ok, Beija-Flor.
Ele ficou
impassível diante da minha atitude rude, de um jeito que me enfureceu.
— Por que você não
passa lá no meu apê com a América hoje à noite?
Olhei com desdém
para ele, que se aproximou ainda mais.
— Não estou
tentando te comer. Só quero passar um tempo com você.
— Me comer? Como
você consegue fazer sexo falando assim?
Travis caiu na gargalhada,
balançando a cabeça.
— Só vem, tá? Não
vou nem te paquerar, prometo.
— Vou pensar
O professor Chaney
entrou a passos largos, e Travis voltou à atenção para frente da sala.
Resquícios de um sorriso permaneciam em seu rosto, tomando mais nítida a
covinha da bochecha. Quanto mais ele sorria, mais eu queria odiá-lo, e no
entanto era esse o motivo pelo qual odiá-lo era impossível.
— Quem sabe me
dizer que presidente teve uma esposa vesga e feia de doer? — perguntou Chaney.
— Anota isso —
sussurrou Travis. — Vou precisar saber disso pra usar nas entrevistas de
emprego.
— Shhh — falei,
digitando cada palavra dita pelo professor.
Travis abriu um
largo sorriso e relaxou na cadeira. Conforme a hora passava, ele alternava
entre bocejar e se apoiar no meu braço para dar uma olhada no monitor do meu
laptop. Eu me concentrei, me esforcei para ignorá-lo, mas a proximidade dele e
aqueles músculos saltando de seu braço tornavam a tarefa difícil. Ele ficou
mexendo na faixa de couro preta que tinha em volta do pulso até que Chaney nos
dispensou.
Eu me apressei
porta afora e atravessei o corredor. Justo quando tive certeza de que estava a
uma distância segura, Travis Maddox apareceu ao meu lado.
— Já pensou no
assunto? — ele quis saber, colocando os óculos de sol.
Uma morena baixinha
parou à nossa frente, ingênua e cheia de esperança.
— Oi, Travis — ela
disse em um tom cantado e brincando com os cabelos.
Parei, exasperada
com o tom meloso dela, e então desviei da garota, que eu já tinha visto antes,
conversando de maneira normal na área comum do dormitório das meninas, o Morgan
Hall. O tom que ela usava lá soava muito mais maduro, e fiquei me perguntando
por que ela acharia que a voz de uma criancinha seria atraente para Travis. Ela
continuou tagarelando uma oitava acima por mais um tempo, até que ele estava ao
meu lado de novo.
Puxando um isqueiro
do bolso, ele acendeu um cigarro e soprou uma espessa nuvem de fumaça.
— Onde eu estava?
Ah, é... você estava pensando.
Fiz uma careta.
— Do que você está
falando?
— Já pensou se vai
dar uma passada lá em casa hoje?
— Se eu disser que
vou, você para de me seguir?
Ele ponderou sobre
a minha condição e então assentiu.
— Sim.
— Então eu vou.
— Quando?
Soltei um suspiro.
— Hoje à noite. Vou
passar lá hoje à noite.
Travis sorriu e
parou de andar por um instante.
— Legal. A gente se
vê depois então, Flor — ele me disse.
Virei uma esquina e
vi América parada com Finch do lado de fora do nosso dormitório. Nós três
acabamos ficando na mesma mesa durante a orientação aos calouros, e eu soube na
hora que ele seria o providencial terceiro elemento da nossa amizade. Ele não
era muito alto, mas passava bem dos meus 1,62 metro. Os olhos redondos
equilibravam as feições longas e esguias, e os cabelos descoloridos geralmente
estavam espetados na parte da frente.
— Travis Maddox?
Meu Deus, Abby, desde quando você começou a pescar nas profundezas do oceano? —
Finch perguntou, com um olhar de desaprovação.
América puxou o
chiclete da boca, fazendo um fio bem longo.
— Você só está
piorando as coisas ao rejeitar o cara. Ele não está acostumado com isso.
— O que você sugere
que eu faça? Durma com ele?
América deu de
ombros.
— Vai poupar tempo.
— Eu disse pra ele
que vou lá hoje à noite.
Finch e América
trocaram olhares de relance.
— Que foi? Ele
prometeu parar de me encher se eu dissesse que ia. Você vai lá hoje à noite,
não é?
— É, vou — disse
América. — Você vem mesmo?
Sorri e fui
andando. Passei por eles e entrei no dormitório, me perguntando se Travis
cumpriria a promessa de não flertar comigo. Não era difícil sacar qual era a
dele: ou ele me via como um desafio, ou como sem graça o bastante para ser
apenas uma boa amiga. Eu não tinha certeza de qual das alternativas me
incomodava mais.
Quatro horas
depois, América bateu à minha porta para me levar até o apartamento do Shepley
e do Travis. Ela não se conteve quando apareci no corredor.
— Credo, Abby! Você
está parecendo uma mendiga
— Que bom — eu
disse, sorrindo para o meu visual.
Meus cabelos
estavam aglomerados no topo da cabeça em um coque bagunçado. Eu tinha tirado a
maquiagem e substituído às lentes de contato por óculos retangulares de aros
pretos. Vestindo uma camiseta bem velha e gasta e uma calça de moletom, eu me
arrastava em um par de chinelos. A ideia me viera à mente horas antes: parecer
desinteressante era a melhor estratégia. O ideal seria que Travis perdesse
instantaneamente o interesse em mim e colocasse um ponto final em sua ridícula
persistência. E, se ele estivesse em busca de uma amiga, meu objetivo era
parecer desleixada demais até para isso.
América baixou a
janela do carro e cuspiu o chiclete.
— Você é óbvia
demais. Por que não rolou no cocô de cachorro para completar o visual?
— Não estou
tentando impressionar ninguém — falei.
— É óbvio que não.
Paramos o carro no
estacionamento do conjunto de apartamentos onde o Shepley morava e segui
América até a escadaria. Ele abriu a porta, rindo enquanto eu entrava.
— O que aconteceu
com você?
— Ela está tentando
não impressionar — disse América.
Ela seguiu Shepley
em direção ao quarto dele. Eles fecharam a porta e eu fiquei ali parada,
sozinha, me sentindo deslocada. Sentei-me na cadeira reclinável mais próxima da
porta e chutei longe os chinelos.
Em termos estéticos,
o apartamento deles era mais agradável do que um apartamento típico de homens
solteiros. Sim, os previsíveis pôsteres de mulheres seminuas e sinais de rua
roubados estavam nas paredes, mas o lugar era limpo, os móveis, novos, e o
cheiro de cerveja velha e roupa suja notavelmente não existia.
— Já estava na hora
de você aparecer — disse Travis, se jogando no sofá.
Sorri e ajeitei os
óculos, esperando que ele recuasse diante da minha aparência.
— A América teve
que terminar um trabalho da faculdade.
— Falando em
trabalhos de faculdade, você já começou aquele de história?
Ele nem pestanejou
ao ver meu cabelo despenteado, e franzi a testa com a reação dele.
— Você já?
— Terminei hoje à
tarde.
— Mas é pra ser
entregue só na próxima quarta-feira — falei, surpresa.
— Achei melhor
fazer logo. Um ensaio de duas páginas sobre o Grant não é tão difícil assim.
— Acho que sou
dessas que ficam adiando — dei de ombros. — Provavelmente só vou começar no fim
de semana.
— Bom, se precisar
de ajuda, é só me falar.
Esperei que ele
desse risada ou fizesse algum sinal de que estava brincando, mas sua expressão
era sincera. Ergui uma sobrancelha.
— Você vai me
ajudar com o meu trabalho.
— Eu só tiro A
nessa matéria — ele disse, um pouco ofendido com a minha descrença.
— Ele tira A em
todas as matérias. Ele é uma droga de um gênio! Odeio esse cara — disse
Shepley, enquanto levava América pela mão até a sala de estar.
Fiquei olhando para
o Travis com uma expressão dúbia e ele ergueu as sobrancelhas.
— Que foi? Você não
acha que um cara cheio de tatuagens e que ganha dinheiro brigando pode ter boas
notas? Não estou na faculdade por não ter nada melhor pra fazer.
— Mas então por que
você tem que lutar? Por que não tentou uma bolsa de estudos? — perguntei.
— Eu tentei.
Consegui meia bolsa. Mas tem os livros, as despesas com moradia, e tenho que
conseguir a outra metade do dinheiro de algum jeito. Estou falando sério, Flor.
Se precisar de ajuda com alguma coisa, é só me pedir.
— Não preciso da
sua ajuda. Consigo fazer um trabalho sozinha.
Eu queria deixar
aquilo pra lá. Devia ter deixado, mas aquele novo lado dele me matava de
curiosidade.
— Você não consegue
fazer outra coisa para ganhar dinheiro? Menos... sei lá... sádica?
Travis deu de
ombros.
— É um jeito fácil
de ganhar uma grana. Não conseguiria tanto assim trabalhando no shopping.
— Eu não diria que
é fácil apanhar.
— O quê? Você está
preocupada comigo? — ele deu uma piscadela. Fiz uma careta e ele deu uma
risadinha abafada. — Não apanho com tanta frequência assim. Quando o adversário
dá um golpe, eu desvio. Não é tão difícil como parece.
Dei risada.
— Você age como se
ninguém mais tivesse chegado a essa conclusão.
— Quando dou um
soco, eles levam o soco e tentam me bater de volta. Não é assim que se ganha
uma luta.
Revirei os olhos.
— Quem é você... o
garoto do Karate Kid? Onde aprendeu a lutar?
Shepley e América
olharam de relance um para o outro e depois para o chão. Não demorou muito para
eu perceber que tinha dito algo errado.
Travis não pareceu
se incomodar.
— Meu pai tinha
problemas com bebida e um péssimo temperamento, e meus quatro irmãos mais
velhos herdaram o gene da idiotice.
— Ah.
Minhas orelhas
ardiam.
— Não fique
constrangida, Flor. Meu pai parou de beber e meus irmãos cresceram.
— Não estou
constrangida.
Fiquei mexendo nas
mechas que se desprendiam do meu cabelo e então decidi soltar tudo e fazer
outro coque, tentando ignorar o silêncio embaraçoso.
— Gosto desse seu
lance natural. As garotas não costumam vir aqui assim.
— Fui coagida a vir
até aqui. Não me passou pela cabeça impressionar você— respondi, irritada por
meu plano ter falhado.
Ele abriu aquele
sorriso largo dele, divertido, meio infantil, e fiquei com mais raiva, na
esperança de disfarçar minha inquietação. Eu não sabia como as garotas se
sentiam quando estavam perto dele, mas tinha visto como se comportavam. Eu
estava vivenciando algo mais parecido com uma sensação de náusea e
desorientação, em vez de paixonite mesclada com risadinhas tolas, e, quanto
mais ele tentava me fazer sorrir, mais perturbada eu ficava.
— Já estou
impressionado. Normalmente não tenho para que as garotas venham até o meu
apartamento.
— Tenho certeza
disso — falei, contorcendo o rosto em repulsa.
Ele era o pior tipo
de cara confiante. Não era apenas descaradamente ciente de seu poder de
atração, mas estava acostumado com o fato de as mulheres se jogarem pra cima
dele, de modo que via meu comportamento frio como um alívio em vez de um
insulto. Eu teria que mudar minha estratégia.
América apontou o
controle remoto para a televisão e a ligou.
— Tem um filme bom
passando hoje na TV. Alguém quer descobrir o que aconteceu a Baby Jane?
Travis se levantou.
Eu já estava saindo
para jantar. Está com fome, Flor?
— Já comi — dei de
ombros.
— Não comeu, não —
disse América, antes de se dar conta de seu erro. — Ah... hum... é mesmo,
esqueci que você comeu... pizza, né? Antes de sairmos.
Fiz uma careta para
ela, pela tentativa frustrada de consertar a gafe, e então esperei para ver a
reação do Travis. Ele cruzou a sala e abriu a porta.
— Vamos. Você deve
estar com fome
— Aonde você vai?
— Aonde você
quiser. Podemos ir a uma pizzaria.
Olhei para minhas
roupas.
— Não estou vestida
para isso...
Ele me analisou por
um instante e então abriu um sorriso.
— Você está ótima.
Vamos, estou morrendo de fome.
Eu me levantei e
fiz um aceno de despedida para América, passando por Travis para descer as
escadas. Parei no estacionamento, olhando horrorizada enquanto ele subia em uma
moto preta fosca.
— Hum... — minha
voz foi sumindo, enquanto eu comprimia os dedos dos pés expostos.
Ele olhou com
impaciência na minha direção.
— Ah, sobe aí. Eu
vou devagar.
— Que moto é essa?
— perguntei, lendo tarde demais o que estava escrito no tanque de gasolina.
— É uma Harley
Night Rod. É o amor da minha vida, então vê se não arranha a pintura quando
subir.
— Estou de chinelo!
Travis ficou me
encarando como se eu estivesse falando outra língua.
— E eu estou de
botas. Sobe aí.
Ele colocou os
óculos de sol, e o motor da Harley rugiu ao ser ligado. Subi na moto e estiquei
a mão para trás buscando algo em que me segurar, mas meus dedos deslizaram do
couro para a cobertura de plástico da lanterna traseira.
Travis agarrou meus
pulsos e envolveu sua cintura com eles.
— Não tem nada em
que se segurar além de mim, Flor. Não solte — ele disse, empurrando a moto para
trás com os pés. Com um leve movimento de pulso, já estávamos na rua,
disparando feito um foguete. As mechas soltas do meu cabelo batiam no meu
rosto, e eu me escondia atrás de Travis, sabendo que acabaria com entranhas de
insetos nos óculos se olhasse por cima do ombro dele.
Ele acelerou quando
chegamos na frente do restaurante e, assim que diminuiu a velocidade para
parar, não perdi tempo e fui correndo para a segurança do concreto.
— Você é louco!
Travis deu uma
risadinha, apoiando a moto no estribo lateral antes de descer.
— Fui no limite de
velocidade.
— É, se
estivéssemos numa estrada da Alemanha! — falei, desfazendo o coque para separar
com os dedos os fios embaraçados.
Travis me olhou
enquanto eu tirava o cabelo do rosto e depois foi andando até a porta,
mantendo-a aberta.
— Eu não deixaria
nada acontecer com você, Beija-Flor
Passei por ele
pisando duro e entrei no restaurante. Minha cabeça não estava muito em
sincronia com meus pés. Um cheiro de gordura e ervas enchia o ar enquanto eu o
seguia pelo carpete vermelho, sujo de migalhas de pão. Ele escolheu uma mesa no
canto, longe dos grupos de alunos e das famílias, e então pediu duas cervejas.
Fiz uma varredura no ambiente, observando os pais que tentavam persuadir os
filhos barulhentos a comer e desviando dos olhares curiosos dos alunos da
Eastern.
— Claro, Travis —
disse a garçonete, anotando nosso pedido. Ela parecia um pouco exaltada com a
presença dele ali.
Prendi os cabelos
bagunçados pelo vento atrás das orelhas, repentinamente com vergonha da minha
aparência.
— Você vem sempre
aqui? — perguntei em tom áspero.
Travis apoiou os
cotovelos na mesa e fixou os olhos castanhos em mim.
— Então, qual é a
sua história, Flor? Você odeia os homens em geral ou é só comigo?
— Acho que é só com
você — resmunguei.
Ele riu,
divertindo-se com meu estado de humor
— Não consigo sacar
qual é a sua. Você é a primeira garota que já sentiu desprezo por mim antes do
sexo. Você não fica toda desorientada quando conversa comigo e não tenta chamar
minha atenção.
— Não é uma manobra
tática. Eu só não gosto de você.
— Você não estaria
aqui se não gostasse de mim.
Involuntariamente,
minha testa franzida ficou lisa e soltei um suspiro.
— Eu não disse que
você é uma má pessoa. Só não gosto de ser tratada de determinada maneira pelo
simples fato de ter uma vagina. E me concentrei nos grãos de sal na mesa até
que ouvi um ruído vindo da direção do Travis, parecido com um engasgo.
Os olhos dele
estavam arregalados e ele tremia de tanto rir.
— Ah, meu Deus!
Assim você me mata! É isso aí, a gente tem que ser amigos. Não aceito não como
resposta.
— Não me incomodo
em sermos amigos, mas isso não quer dizer que você tenha que tentar transar
comigo a cada cinco segundos.
— Você não vai pra
cama comigo. Já entendi.
Tentei não sorrir,
mas falhei. Os olhos dele ficaram brilhantes.
— Eu dou a minha
palavra. Não vou nem pensar em transar com você... a menos que você queira.
Descansei os
cotovelos na mesa para me apoiar.
— Como isso não vai
acontecer, então podemos ser amigos.
Um sorriso travesso
ressaltou ainda mais suas feições quando ele se inclinou um pouquinho mais
perto de mim.
— Nunca diga nunca.
— Então, qual é a
sua história? — foi minha vez de perguntar. — Você sempre foi Travis “Cachorro
Louco” Maddox, ou isso é só desde que veio pra cá?
Usei dois dedos de
cada mão para fazer sinal de aspas no ar quando mencionei o apelido dele, e
pela primeira vez sua autoconfiança diminuiu.
Travis parecia um
pouco envergonhado.
— Não. Foi o Adam
que começou com esse lance do apelido depois da minha primeira luta.
Suas respostas
curtas estavam começando a me incomodar.
— É isso? Você não
vai me dizer nada sobre você?
— O que você quer
saber?
— O de sempre. De
onde você veio, o que você quer ser quando crescer... coisas do tipo.
— Sou daqui,
nascido e criado, e estudo direito penal.
Com um suspiro, ele
desembrulhou os talheres e os endireitou ao lado do prato. Olhou por cima do
ombro com o maxilar tenso. Duas mesas adiante, o time de futebol da Eastern
irrompeu em uma gargalhada. Travis pareceu incomodado pelo fato de eles estarem
rindo.
— Você está de
brincadeira — eu disse, sem acreditar.
— Não, sou daqui
mesmo — ele confirmou, distraído
— Não, eu quis
dizer sobre o seu curso. Você não parece o tipo de pessoa que estuda direito
penal.
Ele juntou as
sobrancelhas, repentinamente focado em nossa conversa.
— Por que não?
Passei os olhos
pelas tatuagens que cobriam seus braços.
— Eu diria que você
parece mais do tipo criminoso.
— Não me meto em
confusão... na maior parte do tempo. Meu pai era muito rígido.
— E sua mãe?
— Ela morreu quando
eu era criança — ele disse sem rodeios.
— Eu... eu sinto
muito — falei, balançando a cabeça. A resposta dele me pegou de surpresa.
Ele dispensou minha
solidariedade.
— Não me lembro
dela. Meus irmãos sim, mas eu só tinha três anos quando ela morreu.
— Quatro irmãos,
hein? Como você os mantinha na linha? — brinquei.
— Com base em quem
batia com mais força, que era do mais velho para o mais novo. Thomas, os
gêmeos... Taylor e Tyler, depois o Trenton. Nunca, nunca mesmo fique numa sala
sozinha com o Taylor e o Ty. Aprendi com eles metade do que faço no Círculo. O
Trenton era o menor, mas ele é rápido. É o único que hoje em dia consegue me
acertar um soco.
Balancei a cabeça,
chocada só de pensar em cinco versões do Travis em uma única casa.
— Todos eles têm
tatuagens?
— Quase todos,
menos o Thomas. Ele é executivo na área de publicidade na Califórnia.
— E o seu pai? Por
onde ele anda?
— Por aí — disse
Travis.
Seu maxilar estava
tenso de novo, e sua irritação com o time de futebol aumentava.
— Do que eles estão
rindo? — perguntei, fazendo um gesto para indicar a mesa ruidosa.
Ele balançou a
cabeça, claramente não querendo me contar do que se tratava. Cruzei os braços e
fiquei me contorcendo, nervosa de pensar no que eles poderiam estar dizendo
para deixá-lo tão irritado.
— Me conta.
— Eles estão rindo
de eu ter trazido você para jantar primeiro. Não é geralmente... meu lance.
— Primeiro?
Quando me dei conta
do que se passava e isso ficou claro na expressão do meu rosto, Travis se
encolheu, mas eu falei sem pensar:
— Eu aqui, com medo
de eles estarem rindo por você ser visto comigo vestida assim, e eles acham que
eu vou transar com você — resmunguei.
— Qual é o problema
de eu ser visto com você?
— Do que estávamos
falando? — perguntei, afastando o calor que subia pelo meu rosto.
— De você. Está
estudando o quê? — ele me perguntou.
— Ah, hum...
estudos gerais, por enquanto. Ainda estou indecisa, mas estou pensando em fazer
contabilidade.
— Mas você não é
daqui. De onde você veio?
— De Wichita. Que
nem a América.
— Como você veio do
Kansas parar aqui?
Comecei a puxar o
rótulo da garrafa de cerveja.
— Só queríamos fugir.
— Do quê?
— Dos meus pais.
— Ah. E a América?
Ela tem problemas com os pais também?
— Não, o Mark e a
Pam são o máximo. Eles praticamente me criaram. Ela meio que me acompanhou, não
queria que eu viesse pra cá sozinha.
Travis assentiu.
— Qual é a do
interrogatório? — perguntei.
As perguntas
estavam passando de uma conversa sobre assuntos gerais e partindo para o lado
pessoal, e eu estava começando a me sentir desconfortável.
Diversas cadeiras
bateram umas nas outras quando o time de futebol levantou. Eles fizeram mais
uma piada antes de irem andando lentamente até a porta e aceleraram o passo
quando Travis se levantou. Os que estavam atrás empurraram os da frente para
fugir antes que Travis conseguisse alcançá-los. Ele se sentou, fazendo força para
espantar a frustração e a raiva.
Ergui uma
sobrancelha
—Você ia me dizer
por que optou pela Eastern — Travis continuou.
— É difícil
explicar — respondi, dando de ombros. — Só parecia certo.
Ele sorriu e abriu
o cardápio.
— Sei o que você
quer dizer."
